ººººººººZEROFOUNDATION

sílaba (texto)

É possível que os deuses não me negassem o achado
de uma imagem equivalente, mas esta informação ficaria
contaminada de literatura, de falsidade.

J.L. Borges in Aleph

Lembro-me de longas temporadas em silêncio, deitado num sofá.

Ao levantar-me e entrar no chuveiro, talvez pelo cérebro se alterar na posição gravitacional, começava a ouvir sílabas. Pedaços incompletos de palavras sibilados em distintos tons e timbres de voz, sinfonia de quase frase.

A percussão da água batente na parede externa do crânio reproduzia, do lado interno, um evento de difusão sonora usual em meio aquático – ouvir som e não identificar a sua proveniência ou sentido. O fenómeno era mecanicamente reprodutível – erguendo-me do sofá, entrando no chuveiro, abrindo a água, reiniciava.

Concluí, quase em tom científico, que:

Enquanto permanecia deitado no sofá choviam sílabas dentro da minha cabeça. Choviam em silêncio, amontoando-se em poças disléxicas e mudas, no espaço entre o cérebro e o crânio.
Quando a água do chuveiro batia no crânio, as sílabas, animadas singularmente por cada gota, diziam o seu som.

(read this text in English)

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